4.03.2006

Canibal

Sentou, esperando, olhando o chão, acendendo o cigarro, comendo as unhas, fumando o cigarro, olhado o cachorro, torcendo o pé, ajeitando a saia, baforando, tremendo de frio, se abraçando, ajeitando o cabelo, abrindo a bolsa, baforando de novo, olhando no espelho, abrindo o batom, passando o batom, labiando os lábios, fumando, apertando a mão na coxa, apertando a mão no peito, acertando o sutiã, comendo as unhas de novo, baforando o cigarro, fumando o cigarro, puxando o cigarro, levantando, andando pra lá, andando pra cá, fumando, fumando, dizendo olá para o pipoqueiro que vai embora, dizendo pra si mesma que “ele está atrasado”, jogando finalmente o cigarro no chão antes que lhe queimasse, andando mais rápido, mais lento, mais rápido, mais lento, sentando de novo, chacoalhando as pernas, batendo os pés, impacientando-se, e “ele não chega logo”, e “eu estou com frio”, e então colocando a blusa, e então se arrependendo pela blusa que não combina, e então retirando a blusa, e então começando a tristeza, e então voltando a ser apreensão, e então de repente se lembrando dele, e então tendo tesão, querendo sexo, lembrando do peito, lembrando do pinto, lembrando da última noite, lembrando do orgasmo, do outro, do outro, do sono, da ida, do telefonema, do encontro, da música, pra poder de novo voltar ao presente da noite fria, da praça calma, levantando de novo, andando de novo, acendo outro cigarro, outro Marlboro, outro palito, puxando, baforando, fumando, libertando, acalmando, retomando a ansiedade, andando, andando, e ele não chegando, não mais evitando o relógio, louca pelos 15 minutos, enlouquecendo, querendo ir embora, sabendo que “agora ele não vem mais”, mas não conseguindo ir embora, e as pernas dormentes, os braços abraçando, o sonho diluindo, a decepção retornando, a angústia retornando, aquela merda toda retornando, lembrando das sessões, das terapias, das psicologias, das pedagogias, das paixonites, tentando então esquecer, voltando pro presente pra olhar o gato, e acendendo outro cigarro, outro cigarro que já não mais acalma, já não mais resolve, e a fumaça afundando a mente dela de volta no passado, matando os neurônios, matando a razão, fazendo com que as pernas já andem sozinhas, e então é desmaio, é desmaio, é desmaiando. Desmaio.
E ela acordou no hospital. Do lado dele, que chegou atrasado, mas salvou a noite.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

e eu fui lendo, e eu fui ficando ansiosa, e eu fui me encontrando nessas palavras, e eu fui identificando com a situação, e eu também espero, e eu continuo esperando, e eu não sei mais o que esperar, e eu fiquei mais ansiosa ainda...
...e ele nunca chega pra salvar a noite...

07:18  

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