3.25.2006

Se ainda pudesse sonhar

Levantou, nu, devagar, enquanto ela respirava leve, com os ígneos cabelos esparramados sobre o lençol barato do hotel. Apoiou-se no beiral da janela e ali ficou, observando o movimento calmo das ladeiras. Em breve viria o carnaval, e com ele as turistas. E com elas, os turistas. E assim era sempre. Vinham, faziam sexo e pulavam, cheiravam lança perfume e iam. E voltavam. Talvez não os mesmos, mas voltavam.
E então se lembrou dela. E do antes. Lembrou-se de quando era apaixonado e feliz. Lembrou-se de quando era ela, ela e ela. Lembrou-se da mulher, da escuridão de seus cabelos e de seu cheiro de suor, todas as noites. E dos carnavais, quando eles ainda eram deles.
E virou os olhos de novo para a ruiva, e para as nádegas perfeitas, e para as costas frias, enquanto acendia o cigarro. E olhou de novo a rua, e os paralelepípedos, pisados e repisados por séculos. Viu o bêbado que passava, apoiado em seus próprios palavrões. Cerrou os olhos, viu a puta acertar nas sombras o preço de mais uma noite.
Lembrou-se!
Colocou, ao lado da bolsa velha, umas notas amassadas. Não se lembrava do preço combinado. Colocou tudo o que tinha, visto que tinha tão pouco. Começou a se vestir, sem pressa, cada pé da meia sendo um pensamento antigo.
Vestido, olhou a ruiva uma última vez. Calmo, chamou, chamou.
- Vamos... Levanta.
Olhos amassados, sorriso nos lábios.
- Sim... Claro, meu amor... Já levantei. Mais uma, garanhão?
- Não. Uma pergunta, apenas. Você lembra de uma morena, uma tão comum, mas tão feliz? Uma que resolveu ir embora e ser minha. Lembra? Uma que morreu por ter tido a liberdade negada. Lembra? Uma que também era sua, mas era minha muito mais do que de qualquer um? Lembra? Uma que só durante um dia sonhou em deixar de ser puta. Lembra?
Assim, como quem de repente se lembra da vingança, enfureceu-se, e tudo passou a ser rápido demais. Os tiros, todos precisos, marcaram com outro vermelho os lençóis baratos.
Ele até chorou um pouco, antes de ir embora, mas sabia que a vingança ainda ia longe. Ainda havia muito sangue para derramar.