3.30.2006

Campo de olivas

“Why don’t presidents fight the war?
Why do they always send the poor?”
System Of A Down – B.Y.O.B.

Não houve tempo… Mascava vagarosamente cada um dos pedaços quase-estragados daquela carne velha. Ajoelhado, enrolado em todas as parcas peles que um soldado pode carregar, rezo aos deuses para não morrer de frio. Mas o capitão, esse maldito, insistiu que marchássemos até a encosta das montanhas, e lá nos preparássemos para o cerco.
Olívio, que desde as primeiras braças da estrada é meu companheiro de marcha, está com o olhar perdido já faz alguns dias. As palavras foram diminuindo conforme andávamos, e já chegam a quase nenhuma. Ele muito anseia por essa batalha, mas já não sei se deseja o regresso ou simplesmente a morte. Qualquer um dos dois lhe seria bastante justo.
Quanto a mim, que nada possuo além dos próprios braços, caminho como se o adiante fosse uma lenda. Desde que partimos de Roma, e que Marte nos abençoou com seu sangue, espero ansiosamente para brandir minha espada. Mas não... Mesmo que muitas vezes me fosse explicado, eu jamais entenderia os motivos que fazem milhares marcharem rumo a uma montanha tão distante, a uma terra de língua estranha, a uma batalha de inimigo desconhecido. Meu soldo, que serventia alguma tem desde muito, é motivo tolo diante da glória que me espera adiante. Minerva não negaria tamanha honra a um soldado romano!
- Por que há tanto se mantém calado, meu amigo? O que te passa pela mente, Olívio?
- ...
- Responda! Talvez eu possa ajudar a acabar com tua aflição.
- Tens filhos, Calísio?
- Não. Tu tens?
- Três. Sinto falta de cada um deles, e mais ainda do leito que deixei.
- Então é esse o motivo pelo qual se cala? Ora... Também sinto falta de meus dias de vinho, meu amigo. Baco nunca me negou alegria alguma. Venho à luta para que todas as festas romanas possam continuar. Para mim, para os meus filhos, para os seus. Pense nisso!
- É para isso mesmo que lutamos, Calísio?
- E porque não seria? Se estiver errado, por favor, me corrija!
- Já não sei se devo ou não te corrigir, Calísio. Quantas batalhas você lutou? É a primeira? Pois saiba que, você morrendo ou não, elas continuarão. Morrendo eu ou tu, não importa. Elas continuarão! A parte mais terrível dessa história infinda, Calísio, são os motivos que se perdem. Já não me lembro porque luto, e também não sei os motivos que levarão meus filhos a luta. Mas tudo continuará, e lá todos morreremos, eu, tu e nossos filhos. Para quê? Os capitães também morrerão, Calísio. Mas nenhuma gota de sangue deles será derramada. Não morrerá senador algum. Os césares governarão. Sempre haverá quem lhes moa as olivas, Calísio. Nunca lhes faltará óleo. Quanto a nós, Calísio... Quanto a nós, nunca nos faltará sangue.

E houve sangue de ambos, mas de minha parte o silêncio foi propagado. Tive de brandir em outras batalhas a espada de um Olívio morto, e de ensinar a seus filhos a arte da espada, e de tomar seu lugar quente no leito. Contudo, com honra ou não, as coisas não mudaram. Não mudam.
Olívio estava certo e o sangue nunca deixou de escorrer, mesmo sempre havendo oliveiras. Mesmo sempre havendo alguém disposto a fazer o óleo.

3.25.2006

Se ainda pudesse sonhar

Levantou, nu, devagar, enquanto ela respirava leve, com os ígneos cabelos esparramados sobre o lençol barato do hotel. Apoiou-se no beiral da janela e ali ficou, observando o movimento calmo das ladeiras. Em breve viria o carnaval, e com ele as turistas. E com elas, os turistas. E assim era sempre. Vinham, faziam sexo e pulavam, cheiravam lança perfume e iam. E voltavam. Talvez não os mesmos, mas voltavam.
E então se lembrou dela. E do antes. Lembrou-se de quando era apaixonado e feliz. Lembrou-se de quando era ela, ela e ela. Lembrou-se da mulher, da escuridão de seus cabelos e de seu cheiro de suor, todas as noites. E dos carnavais, quando eles ainda eram deles.
E virou os olhos de novo para a ruiva, e para as nádegas perfeitas, e para as costas frias, enquanto acendia o cigarro. E olhou de novo a rua, e os paralelepípedos, pisados e repisados por séculos. Viu o bêbado que passava, apoiado em seus próprios palavrões. Cerrou os olhos, viu a puta acertar nas sombras o preço de mais uma noite.
Lembrou-se!
Colocou, ao lado da bolsa velha, umas notas amassadas. Não se lembrava do preço combinado. Colocou tudo o que tinha, visto que tinha tão pouco. Começou a se vestir, sem pressa, cada pé da meia sendo um pensamento antigo.
Vestido, olhou a ruiva uma última vez. Calmo, chamou, chamou.
- Vamos... Levanta.
Olhos amassados, sorriso nos lábios.
- Sim... Claro, meu amor... Já levantei. Mais uma, garanhão?
- Não. Uma pergunta, apenas. Você lembra de uma morena, uma tão comum, mas tão feliz? Uma que resolveu ir embora e ser minha. Lembra? Uma que morreu por ter tido a liberdade negada. Lembra? Uma que também era sua, mas era minha muito mais do que de qualquer um? Lembra? Uma que só durante um dia sonhou em deixar de ser puta. Lembra?
Assim, como quem de repente se lembra da vingança, enfureceu-se, e tudo passou a ser rápido demais. Os tiros, todos precisos, marcaram com outro vermelho os lençóis baratos.
Ele até chorou um pouco, antes de ir embora, mas sabia que a vingança ainda ia longe. Ainda havia muito sangue para derramar.

3.18.2006

Diferente de sempre

Resolveu afogar-se no copo de pinga, só para ver se o dia pingava logo.
- Por favor!
Olhou para ela.
- Por que diabos você mesma não faz isso, porra!
- Mas que saco...
Saiu apressado, rumo ao boteco, rumo ao boteco.
- Porra! A carteira! A merda da carteira, merda!
E agora? Ele tentava decidir se voltava e revia as fuças dela, ou se ia direto para o bar e pedia a “pendura”.
- Droga...
Achou melhor não. Direto pro bar, direto pro bar.
Sentou na cadeira de sempre, perto da parede e do bueiro de sempre. Levantou o dedo de sempre, pediu o de sempre para o garçom de sempre. Bebeu no gole de sempre, rápido como sempre e, como sempre, os olhos avermelharam. E assim, aquilo durou as horas de sempre.
- Pendura na de sempre, João!
Foi carregado para casa como sempre, mas não pelos amigos de sempre, porque em boteco os amigos de hoje não são os de amanhã. Porre nunca é igual, pensava ele. Foi deixado na calçada, como sempre, e o porteiro apertou o botão no elevador, como sempre. A cara do porteiro era diferente...
- Melhor assim... Assim minha mulher não me mata, não. Mata não... Antes chegando sozinho!
No 16º foi recepcionado pela polícia.
- Seu Zé, sua mulher foi encontrada morta no banheiro. Enfarto fulminante.
E pela primeira vez em tantos anos o seu Zé deixou de brigar com a mulher depois do boteco. Sentiu falta. Sentiu...
- Arre...
Não, não... Da mulher? Não. Sentiu falta da briga, que era a única coisa que fazia o dia do seu Zé um pouco diferente.
Há, fazia! E se fazia...

3.16.2006

Mas livrai-nos do mal

Largue já desse pedaço de osso,
vá devagar,
devagar,
vagar.

Ande na linha esperança,
essa linha,
esperança,
criança.

Converte-se mar de fogo gasolina,
creolina de pinga,
maltrapilha,
pilha.

Pilha, pilhagem, morre tu, morro eu,
e o óleo bicho comeu,
bicho morreu,
morre tu
morre eu.

Morre logo que há de ser melhor,
que pior assim não há,
há de ser,
há de ter,
há.

Há?
Que há além de nós, ganância?
Mortos de noite,
vivos pelo dia que não vem?
Morre?

Vivo eu,
morto tu.
E antes tu do que eu,
antes humano,
antes dinheiro,
antes dinheiro,
antes dinheiro,
que sem ele não hei de comprar gente.

Comprar eu,
comprar tu,
compro eu,
compra tu,
compra cú.
Amém.

3.12.2006

Moleque de vento

Vá, moleque! Corre que a vida não é pastel de vento! Vida não é esse techno dançante dos playboys de carro. Vida é pegar da feira e correr dos homi, correr batido, passar vazado...
Vai, moleque! Corre que vai! Corre, corre, corre...
E correndo ele atropelou velhinha, molequinho e carro de bacana. E atropelou a vida de cada um ali, vire e meche na feira, vire e meche tendo que correr também. Vire e meche barraca, vire e meche nessa encrenca de moleque batido correndo por comida. Corre, moleque! Já disse! Se não os homi pega! Vai!
E diz que quando os homi pega assim, moleque malandro que rouba comida, toma a toque de marreta com o cacete na cabeça e no joelho, que é pra não poder correr mais. Vai, moleque! Corre que o diabo cinza vem de cacete na mão! E daqueles comunicadores que chamam os outros demônios! Vai que o pastel é de massa, mas a fome é de lasca! Corre!
Não, moleque! Não ajuda a velha que ela tem mesmo é tempo pra pegar tanta coisa do chão! Vai a toque de caixa, porque você não se encaixa mesmo. Mesmo que tente! Vai! Ninguém te quer aqui, cão imundo. Volta pra toca, e vá lá roer teu osso de vento, teu pastel de coisa nenhuma. Deixa em paz a feira que não te vê, não te quer... Vá, moleque! Corre! E vira, que tem meganha na frente! Vai!
Eita que te pegaram, moleque da porra! Vê só o que te acontece. E agora? O que tu mãe vai dizer de te ver assim todo roxo? E agora, mocho? Seguinte, moleque: vai pra casa devagar, que na cadeia ninguém te quer. É moleque... Eu sei. Eu sei... Mas não se incomode com isso.
Comida de cadeia é fácil, mas é ruim pra caralho.

3.11.2006

Jeremias

Jeremias tinha medo do sagrado. Jeremias tinha medo dos homens.

Um dia,
iluminado,
Jeremias ungiu-se com um tiro na cabeça.

No inferno,
ao conversar com o Capeta,
entendeu Jeremias que o problema não,
não eram os homens,
não era o sagrado.
O problema mesmo era o Medo.

Mármore

- Eu te amo.
- Hum...
- Eu te amo.
- Como você sabe? Teu exagero é tua marca.
- Eu te amo.
- Só isso?
- E não? Depois de tudo, ter que dizer isso assim não é fácil. Eu te amo.
- Você não me respondeu...
- Sabe aquela antiga mania perdida, de olhar em teus olhos durante horas e horas a fio, quando deitados, eu tentando ler teus pensamentos, você tentando se esquivar? Lembra? Lembra daquelas horas de chuva, em que saímos correndo um do outro, eu te perseguindo, você se lamentando por não conseguir escapar? Lembra dos teus sorrisos de lado, que eu tanto fazia para poder enxergar? Lembra daquele sotaque que eu fazia questão de te fazer conservar? Lembra quando você disse que ia embora?
- Sim.
- Então eu chorei por saber que agora não podia mais te perseguir, ou te segurar. Agora só me restava a opção de chorar. E eu chorei. Não posso te deixar ir embora sem que meus olhos possam mostrar que te amo, e que não posso te deixar. Lembra?
- Lembro.
- Eu te amo. Não vá. Escreverei uma poesia por dia.
- Pra quê?
- Pra você se lembrar... Pra você ficar, de curiosa que é.
De caderno nas mãos vi os olhos dela derramarem a chuva de um tempo que não sabia que ainda existia. Lamentei por cada idiotice, por cada estupidez, por cada egoísmo, cada pensamento, cada escorregão e traição. Lamentei porque, mesmo na minha entrega, ela deu um passo atrás. Subiu no ônibus e se foi. Lamentei de novo, mas não pelas poesias que ficaram pra sempre naquele chão molhado. Lamentei por não poder correr de novo, pelos sorrisos que se foram, pela inspiração que ela levou...
Lamentei por ter perdido, sem perceber, um pedaço do coração de pedra que só ela amoleceu.